domingo, 26 de junho de 2011

A violência bate à sua porta?

                                              Imagem de Gran Torino, Clint Eastwood, 2008

Sempre fui avessa a filmes violentos. O desconforto que me causam vai além do mal estar pelas cenas desagradáveis. Acho que foi por isso que demorei tanto para assistir Gran Torino, filme de 2008 de Clint Eastwood.  Confesso que me surpreendi!
O filme conta a história de um ex combatente da Guerra da Coréia atolado em remorsos, rancores e preconceitos. Inicia-se com o velório da esposa do personagem principal, vivido pelo próprio Eastwood. Em pé, ao lado do caixão da mulher, o homem visivelmente descontente com o mundo atual, parece encontrar-se em uma série de críticas internas a respeito de tudo e todos, o que se percebe pela densidade de seu fuzilante olhar reprovador.
A morte da companheira acaba por realçar seu péssimo relacionamento com os filhos, que a essa altura pensam no que fazer com um pai velho, rabugento, que não se adapta às mudanças do mundo, dificílimo de lidar e agora viúvo,  insistindo em continuar vivendo em um bairro do subúrbio de Detroit que ao longo dos anos passou a ser habitado pelos “odiosos” asiáticos e cercado por gangues violentas de jovens perdidos e sem perspectivas.
E é por conta de uma iniciação mal sucedida de um garoto da etnia asiática hmong em uma dessas gangues que se inicia uma bonita relação entre o velho ranheta, que se descobre não tão ranheta assim, e dois jovens orientais que preservam princípios tão raros nos jovens de hoje e considerados tão importantes pelo velho ranzinza, fazendo-o questionar os próprios preconceitos, mudar seus valores e encontar alento para parte de sua solidão.
Por conta do afeto verdadeiro que se desenvolve entre o “velho mestre” e o “menino aprendiz”, o jovem hmong é apresentado a uma nova gama de oportunidades e salva-se de uma provável predistinação ao mundo violento do crime.
Nas entrelinhas o filme fala sobre princípios éticos e morais nos dias de hoje, nos quais vivemos em plena crise de valores. E a certa altura, nos surpreendemos a nos questionar quais são os nossos reais valores, em que acreditamos e o que, exatamente, norteia as nossas decisões. Quais serão os fatores que determinam os caminhos que seguimos em nossas vidas? Será que o meio em que vivemos pode determinar o tipo de pessoa que seremos?
Lembrei-me, então, de quando eu era estudante de medicina e fui escalada para estagiar em uma Unidade de Saúde da Família que ficava em uma das regiões mais miseráveis e violentas da cidade.
Havia um garotinho, por volta dos seus sete ou oito anos, que ia todos os dias fazer curativo em uma ferida imensa e dolorosa em sua perna direita. Ele sempre ia sozinho. Enquanto fazíamos o curativo, para distraí-lo , eu e minha colega de estágio conversávamos com ele sobre várias coisas, dentre elas, o futuro. Ele sonhava com um lindo futuro, queria ser médico para ajudar as pessoas e a mãe, que estava doente. Era um menino esperto, inteligente, empolgadíssimo com a escola e que havia descoberto nos livros uma grande companhia! Pegava-os na biblioteca da escola, lia compulsivamente e nos contava as histórias depois.
Eu ficava inconformada com aquele ferimento em sua perna, não podia deixar de pensar que bastava um socorro na hora certa, alguns pontos de sutura e uma boa higiene para evitar todo aquele transtorno. Como a mãe podia ter deixado a ferida ficar daquele jeito?
Um dia fomos com o médico responsável pela unidade na casa do menininho. A visita seria para a mãe. Conforme avançávamos pelo bairro o meu coração ia ficando mais e mais apertado. Era tanta pobreza! Lembro que viamos os garotinhos pequeninos jogando bola no meio dos adolescentes fumando crack, com a maior naturalidade e eu pensava: “Meu Deus, eles crescem vendo isso, é cotidiano para eles, como eles vão saber que está errado?”
Chegamos ao nosso destino, uma casa feita de ripas de madeira e sacos de ração para cachorro. Era lá que viviam o faceiro garotinho leitor e sua mãe adoentada. A mãe nos contou que no dia do acidente ela não conseguiu levar o filho ao Pronto Socorro. Não tinha R$0,90 para pagar o onibus. Até tentou levá-lo no colo, a pé, mas o cansaço agravado por seu coração frágil a impediu. Coitada, não tinha nem meios de manter a ferida adequadamente limpa, mal havia água para beber na casa. Senti uma culpa tamanha por meus prévios julgamentos, como é fácil sair por aí emitindo opiniões quando desconhecemos a realidade alheia! Difícil era, para uma jovem de classe média, conceber que alguém poderia viver naquelas condições.
Fiquei pensando nos sonhos do menino e em todas as dificuldades que teria que enfrentar ao longo da vida. Ele era muito educado, recebia muitos bons conselhos da mãe, assim como o jovem do filme, mas vivia ali. Como não sucumbir ao seu meio? Por quanto tempo a mãe doente e frágil conseguiria mantê-lo distante das adversidades locais, das drogas, do crime e da violência que batia insistentemente à sua porta, principalmente nas noites de tiroteios?
O jovem asiático do filme teve a sorte de cruzar em seu caminho com o velho justiceiro, que o desviou do “destino” de fazer parte da gangue de seu primo; mas quem salvaria o menininho da ferida das predestinações mais prováveis daquele lugar?
Lembro-me de que, na ansia de ajudá-lo e me aproveitando de sua paixão por livros, dei-lhe o livro Breve relato de como as esteiras venceram os cães de guerra. Nem sei se ele leu e, se leu, não sei se entendeu, o livro não era muito apropriado para a sua idade, mas ele cresceria e um dia, quem sabe, entenderia.
Hoje, passados mais de dez anos, fico pensando o que terá acontecido com o garotinho. O que será que determinou os seus passos e as suas escolhas? Quais valores terão prevalecido?
E de repente percebo que o meu desconforto não vem da violência da ficção, mas daquela que bate à nossa porta e entra em nossas vidas todos os dias pelos mais variados meios e que, infelizmente, não se findam quando a tela escurece e o letreiro desce...


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